terça-feira, 26 de junho de 2007

Esta tarde não me arde: à deriva em meu "Castelinho"



Deixo estar a passagem veloz dos dias. Desobedeço sem remorsos. Antes encontrar-se perdido que perder-se encontrado. Pelas horas nuas da tarde ardente, vago por entre pedras, pescadores, gaivotas e o mar. Medito à concentração minuciosamente solta, leve e pesada, como só o mar ( e o pescador) sabem viver. Ouço aquela espreita que vem com a maresia vaporosa, quase quente, no desejo de tapear algum peixe vacilante.

Calma e atenção em uma só harmonia de movimentos e pensamentos. E penso que o pensamento é o mais sublime movimento dos seres humanos. Vejo no desejo dos olhos dos pescadores esse brilho animal, de cálculos biofisicamente inconscientes, mas fervorosamente presentes no tato entre sua mão e o mar, tendo a linha de nylon como sutil ponte. E deixo estar o ir e vir das ondas a umedecer meus olhos com o balanço viajante. As ondas parecendo penetrar por entre as pedras e atravessar o continente em segundos, invadindo solo adentro... É mais bonito de ver e de ouvir que o trânsito na avenida Niemayer, logo atrás da minha minha “terrinha do Nunca particular”, muito embora ali seja um logradouro público segundo a lei, a lei escrita. É mais bonito, inclusive, após o entardecer. As luzes do engarrafamento, nem de perto e nem de longe superam o o encanto místico do imprevisível bailar das ondas refletindo a prateada incandescência do reflexo lunar.

Por dentre vilosidades esculpidas nas pedras estendem-se pequenos aquários naturais, que mais parecem criados por algum paisagista de tão cheios de perfeições notáveis: ouriços, anêmonas, algas verdes e vermelhas, caranguejos pequeninos, mariscos agrupadinhos e alguns pequenos peixes adaptados àquele pequeno refúgio fechado, oceano privado. As ondas às vezes batiam mais alto fazendo renovar a águas dos aquários.

Pela tarde, dois peixes conhecidos pelo nome de mangabá pelos pescadores, apesar de não serem ainda crescidos o suficiente, foram pegos na armadilha do anzol de um deles. Eram, pois, provavelmente, os mais valentes do cardume de onde vinham, porque ambos foram capturados logo após a isca ser lançada ao mar. O pescador deixou-os em um dos pequenos aquários naturais e, antes de mudar de ponto – andar de uma pedra à outra em busca de uma mudança de sorte – me pediu para que antes de ir-me embora que eu os soltasse.

_”Não carece de matar uns pobrezinho deste tamaninho – e com o polegar e o indicador exibiu um tamanho exageradamente ínfimo – quando eles ainda tem muita vida pra crescê e disová por essas banda aqui – e fez questão de apontar a direção dos dois litorais que se estendiam tendo como ponto referencial a nossa própria localização, como que fossemos de fato o centro crucial daquela identificação.

Não sabia que seria tão complicado capturá-los para lhes devolver a liberdade. E ri comigo mesmo daquele paradoxo retórico. Depois de mil e uma estratégias diferentes, já quase desistindo, sentei-me ao lado da “micro-lagoa rochosa”, e então subitamente comunguei com a paisagem, os sons do mar, as ilhas , nuvens, cores espalhadas, cores espelhadas, uma osmótica meditação do olhar, absorvendo toda aquela luz para os confins atômicos da minha mente. De repente, num susto colossal recebi um dos peixes diretamente entre minhas pernas, que estavam cruzadas com fazem os índios brasileiros. Recuperado do espanto, tomei-o cuidadosamente com as mãos e subi ao topo da pedra que é conhecida pelos íntimos como “Castelinho”. O peixe rebatia-se, já furioso, clamando pelo seu retorno à liberdade da comunhão oceânica. Inflava suas guelras numa ânsia desesperada em extrair da ardente atmosfera o oxigênio que agora parecia queimar-lhe. Não me demorei no pico, logo me lancei à frente, saltando para o nada. Oito metros do que conheço de mais puro, se é que conheço verdadeiramente o teor desta palavra, puro. Oito, oito infinitos metros de puro presente, de pura eternidade, metros de descontrole previsível, pureza plena, risco e sabedoria num só movimento. Não sei quanto tempo do pico à água, mas cada um dos poucos segundos parecem minutos, fragmentos de minuto que são intermináveis, e que, como se ali naquele parênteses-asterisco do espaço-tempo resumisse-se toda uma época de vida aglutinada num determinado instante, de toda uma geração, e uma população inteira, e uma cultura, e anos e anos de história, e tudo o mais que aconteceu para que aquilo ali agora estivesse onde e como eu e tudo à volta estávamos, aquele recanto de felicidade instantânea e eterna, como metáfora viva a mesclar-se com os paradoxos das idéias, sentimentos, emoções, forças, circunstâncias imprevisíveis, tudo numa coisa só, uma coisa sem forma de tão acelerada que é em si mesma, tão metamórfica.

O vento empurra o dia para longe e mergulho na morna água, que, por incrível que fosse, estava absolutamente cristalina. Deixei meu corpo deslizar por aquela placenta esmeralda até meu pé tocar vagarosamente uma pedra coberta de algas. Abri os olhos para ver as bolhinhas de ar subirem e me causar aquela sensação forte que trago das brincadeiras imaginativas da infância, a de que estou a pular dentro de um copo de soda limonada, e sinto-me todo cítrico, como que respirando com os olhos aquele refrigerante imaginário. Só depois de subirem quase todas as pequenas bolhas é que me dei conta de que o peixe ainda estava entre meus dedos. Ainda imóvel, provavelmente tonto com abrupta descida, trouxe minha mãe com ele até a outra e fiz formar-se uma espécie de gaiola de dedos, e o trouxe para junto de meu rosto, para observá-lo de bem perto. Fiz o truque da bolha de ar equilibrada num olho para observá-lo em detalhes, como que estivesse com máscara de mergulho.

Eu esquecia-me completamente que acima de mim ondas se esfarelavam por entre pedras e carros buzinavam a alguns metros dali no engarrafamento ardente que preenchia toda a tarde daquela cidade paradoxal. Fui abrindo vagarosamente a “gaiola”, e fiquei a sentir o peixe, ainda inerte, a tocar com suas escamas hidrodinamicamente escorregadias por sobre as vilosidade, agora tão grosseiras, da palma de minha mão. Então o peixe fez um único movimento e em milésimos de segundo estava bem longe, adentrando o universo das verdes e vermelhas algas marinhas e pedras submersas.

Quase havia me esquecido, que, como as guelras do peixe clamavam pela sopa de moléculas oceânicas, meus pulmões se encontravam igualmente famintos da sopa de moléculas atmosféricas.

Depois de soltar meu ar ainda de baixo d'água, chegar à superfície, e, enfim captar daquele vento cheio de maresia a pequena parte que cabia em meus pulmões, foi, simplesmente, catártico. Abri um sorriso tão libertário quanto o sorriso implícito na partida veloz do peixinho que havia ficado submerso. Entre-cortado pelas ondulações, comecei a escalada de volta ao cume do Castelinho. Vi a noite então cair como um cenário atrás de mim, um cenário que abruptamente muda de cor para complementar e completar algum movimento dramatúrgico. Foi então que me dei conta: havia ainda um peixe à ser libertado. Voltei ao pequeno aquário e, apesar do crepúsculo e com ajuda da lua, pude rapidamente constatar que o peixe havia já encontrado seu caminho de volta para casa, sozinho.

E ao anúncio da noite senti que só poderia encontrar sozinho aquilo que somente eu poderia procurar. Embora as estrelas já se destacassem no céu, eu sentia que o dia tinha um perfeito início. Chegando em casa, da mesma forma como caíra o dia enquanto eu escalava, adormeci abraçando todas as mudanças que o horizonte pudesse representar; e sonhei exatamente com aquilo que eu vivia, finalmente - realizei que aquele sonho que imaginava, poesia, era exatamente o que eu vivia.

[Uirah Felipe]

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado pela visita lá no Taxitramas. É sempre bom receber admiradores do Caio por lá. Vou esticar as pernas e dar uma olhada por aqui, se me permite.
Há braços!!