terça-feira, 26 de junho de 2007

Esta tarde não me arde: à deriva em meu "Castelinho"



Deixo estar a passagem veloz dos dias. Desobedeço sem remorsos. Antes encontrar-se perdido que perder-se encontrado. Pelas horas nuas da tarde ardente, vago por entre pedras, pescadores, gaivotas e o mar. Medito à concentração minuciosamente solta, leve e pesada, como só o mar ( e o pescador) sabem viver. Ouço aquela espreita que vem com a maresia vaporosa, quase quente, no desejo de tapear algum peixe vacilante.

Calma e atenção em uma só harmonia de movimentos e pensamentos. E penso que o pensamento é o mais sublime movimento dos seres humanos. Vejo no desejo dos olhos dos pescadores esse brilho animal, de cálculos biofisicamente inconscientes, mas fervorosamente presentes no tato entre sua mão e o mar, tendo a linha de nylon como sutil ponte. E deixo estar o ir e vir das ondas a umedecer meus olhos com o balanço viajante. As ondas parecendo penetrar por entre as pedras e atravessar o continente em segundos, invadindo solo adentro... É mais bonito de ver e de ouvir que o trânsito na avenida Niemayer, logo atrás da minha minha “terrinha do Nunca particular”, muito embora ali seja um logradouro público segundo a lei, a lei escrita. É mais bonito, inclusive, após o entardecer. As luzes do engarrafamento, nem de perto e nem de longe superam o o encanto místico do imprevisível bailar das ondas refletindo a prateada incandescência do reflexo lunar.

Por dentre vilosidades esculpidas nas pedras estendem-se pequenos aquários naturais, que mais parecem criados por algum paisagista de tão cheios de perfeições notáveis: ouriços, anêmonas, algas verdes e vermelhas, caranguejos pequeninos, mariscos agrupadinhos e alguns pequenos peixes adaptados àquele pequeno refúgio fechado, oceano privado. As ondas às vezes batiam mais alto fazendo renovar a águas dos aquários.

Pela tarde, dois peixes conhecidos pelo nome de mangabá pelos pescadores, apesar de não serem ainda crescidos o suficiente, foram pegos na armadilha do anzol de um deles. Eram, pois, provavelmente, os mais valentes do cardume de onde vinham, porque ambos foram capturados logo após a isca ser lançada ao mar. O pescador deixou-os em um dos pequenos aquários naturais e, antes de mudar de ponto – andar de uma pedra à outra em busca de uma mudança de sorte – me pediu para que antes de ir-me embora que eu os soltasse.

_”Não carece de matar uns pobrezinho deste tamaninho – e com o polegar e o indicador exibiu um tamanho exageradamente ínfimo – quando eles ainda tem muita vida pra crescê e disová por essas banda aqui – e fez questão de apontar a direção dos dois litorais que se estendiam tendo como ponto referencial a nossa própria localização, como que fossemos de fato o centro crucial daquela identificação.

Não sabia que seria tão complicado capturá-los para lhes devolver a liberdade. E ri comigo mesmo daquele paradoxo retórico. Depois de mil e uma estratégias diferentes, já quase desistindo, sentei-me ao lado da “micro-lagoa rochosa”, e então subitamente comunguei com a paisagem, os sons do mar, as ilhas , nuvens, cores espalhadas, cores espelhadas, uma osmótica meditação do olhar, absorvendo toda aquela luz para os confins atômicos da minha mente. De repente, num susto colossal recebi um dos peixes diretamente entre minhas pernas, que estavam cruzadas com fazem os índios brasileiros. Recuperado do espanto, tomei-o cuidadosamente com as mãos e subi ao topo da pedra que é conhecida pelos íntimos como “Castelinho”. O peixe rebatia-se, já furioso, clamando pelo seu retorno à liberdade da comunhão oceânica. Inflava suas guelras numa ânsia desesperada em extrair da ardente atmosfera o oxigênio que agora parecia queimar-lhe. Não me demorei no pico, logo me lancei à frente, saltando para o nada. Oito metros do que conheço de mais puro, se é que conheço verdadeiramente o teor desta palavra, puro. Oito, oito infinitos metros de puro presente, de pura eternidade, metros de descontrole previsível, pureza plena, risco e sabedoria num só movimento. Não sei quanto tempo do pico à água, mas cada um dos poucos segundos parecem minutos, fragmentos de minuto que são intermináveis, e que, como se ali naquele parênteses-asterisco do espaço-tempo resumisse-se toda uma época de vida aglutinada num determinado instante, de toda uma geração, e uma população inteira, e uma cultura, e anos e anos de história, e tudo o mais que aconteceu para que aquilo ali agora estivesse onde e como eu e tudo à volta estávamos, aquele recanto de felicidade instantânea e eterna, como metáfora viva a mesclar-se com os paradoxos das idéias, sentimentos, emoções, forças, circunstâncias imprevisíveis, tudo numa coisa só, uma coisa sem forma de tão acelerada que é em si mesma, tão metamórfica.

O vento empurra o dia para longe e mergulho na morna água, que, por incrível que fosse, estava absolutamente cristalina. Deixei meu corpo deslizar por aquela placenta esmeralda até meu pé tocar vagarosamente uma pedra coberta de algas. Abri os olhos para ver as bolhinhas de ar subirem e me causar aquela sensação forte que trago das brincadeiras imaginativas da infância, a de que estou a pular dentro de um copo de soda limonada, e sinto-me todo cítrico, como que respirando com os olhos aquele refrigerante imaginário. Só depois de subirem quase todas as pequenas bolhas é que me dei conta de que o peixe ainda estava entre meus dedos. Ainda imóvel, provavelmente tonto com abrupta descida, trouxe minha mãe com ele até a outra e fiz formar-se uma espécie de gaiola de dedos, e o trouxe para junto de meu rosto, para observá-lo de bem perto. Fiz o truque da bolha de ar equilibrada num olho para observá-lo em detalhes, como que estivesse com máscara de mergulho.

Eu esquecia-me completamente que acima de mim ondas se esfarelavam por entre pedras e carros buzinavam a alguns metros dali no engarrafamento ardente que preenchia toda a tarde daquela cidade paradoxal. Fui abrindo vagarosamente a “gaiola”, e fiquei a sentir o peixe, ainda inerte, a tocar com suas escamas hidrodinamicamente escorregadias por sobre as vilosidade, agora tão grosseiras, da palma de minha mão. Então o peixe fez um único movimento e em milésimos de segundo estava bem longe, adentrando o universo das verdes e vermelhas algas marinhas e pedras submersas.

Quase havia me esquecido, que, como as guelras do peixe clamavam pela sopa de moléculas oceânicas, meus pulmões se encontravam igualmente famintos da sopa de moléculas atmosféricas.

Depois de soltar meu ar ainda de baixo d'água, chegar à superfície, e, enfim captar daquele vento cheio de maresia a pequena parte que cabia em meus pulmões, foi, simplesmente, catártico. Abri um sorriso tão libertário quanto o sorriso implícito na partida veloz do peixinho que havia ficado submerso. Entre-cortado pelas ondulações, comecei a escalada de volta ao cume do Castelinho. Vi a noite então cair como um cenário atrás de mim, um cenário que abruptamente muda de cor para complementar e completar algum movimento dramatúrgico. Foi então que me dei conta: havia ainda um peixe à ser libertado. Voltei ao pequeno aquário e, apesar do crepúsculo e com ajuda da lua, pude rapidamente constatar que o peixe havia já encontrado seu caminho de volta para casa, sozinho.

E ao anúncio da noite senti que só poderia encontrar sozinho aquilo que somente eu poderia procurar. Embora as estrelas já se destacassem no céu, eu sentia que o dia tinha um perfeito início. Chegando em casa, da mesma forma como caíra o dia enquanto eu escalava, adormeci abraçando todas as mudanças que o horizonte pudesse representar; e sonhei exatamente com aquilo que eu vivia, finalmente - realizei que aquele sonho que imaginava, poesia, era exatamente o que eu vivia.

[Uirah Felipe]

domingo, 24 de junho de 2007

Abortando fagulhas nervosas




Sempre me senti... muito.
Quero dizer
sempre me sinto
mas
sempre me senti de um jeito...
um jeito de se sentir que sente mais
que sente mais que os próprios limites do corpo
e dos sentidos próprios à este

aquela extensão elasticamente imprevisível da arte...

sempre... sempre me senti muito...
diferente?
Não sei, porque nisso me sinto igual
todos somos assim, diferentes...
mas sinto-me... estranho?
Não exatamente, faço parte,
sinto-me...

Esquisito! Será essa a concepção do número 1 (um) nos confins da minha mente? Uno, único, individuo-all?

...difícil procurar as palavras
assim me sinto, difícil
e esquisito, estranho à mim mesmo
a cada instante
Sinto-me?
Tudo muda tão veloz

tento
essa tentativa, a-narrativa
essa força que se faz por alcançar aquilo que...

bem

aquilo que
aquilo que as palavras não alcançam

Sinto-me tão sem jeito comigo esmo
comigo mesmo?
Sei-me esse sentir que esvaira-se feito a maresia no vento sul
sei-me? De onde vem o sul se desconheço o norte?

Sinto na estranha loucura da minha percepção existencial
uma espécie de constante, uma constante
diante do fato eterna e gradualmente agravante
que se instala ciclicamente em meu ser

este sendo que nem sente,
que tanto tenta que nem mente
incrédulo e contente, venta

Ahhh
Auxente presença que me aguente
enquanto eu existir, conformadamente
que nem me tente
que não me minta
que nem me enfrente...

Minhas asas são invisíveis
não poderão ser podadas...

Em mim nunca caberão fronteiras
e o que não sei o que faço...

simplesmente deixo ao que fadado inconstatável é:

e pensaria comigo:
_É solução minha!

Mas pra que fosse entendido diria:
_É problema meu!

E a satisfação seria intrínseca, mas nunca o foi...
e a gente inventa ela racionalmente
quando
verdadeiramente
experimenta-a

e se perde,
razão irracional
tentando encontrar explicação
e se encontrando, que em si mesma
é que está toda a criação...
toda invenção entre o bem e o mal...

quinta-feira, 21 de junho de 2007

-_-



.
..
...
Deixo o corpo respirar alguns segundos
debaixo do chuveiro
alternando entre o mais quente – sauna
e o mais frio – inverno gélido
Feto
luzes desligadas
acesa mente
sentidos
tato
o óbvio enfim
evidente
e o pulso
pulf pulf pulf
como os rios que se subdividem em inúmeros afluentes
traçando um pulmão florestal
eu pingava minha respiração
me deixando ser lavado pelo levar
azulejos, praias
rios pro mar
pro ralo
água
ar
.

Não é querendo
que se escreve poesia
...

domingo, 17 de junho de 2007

des_Fruto



Sinto-me
mero reflexo
que sou
sendo o que já é
Este hoje
desta Terra
espaço-temporal
esta quebra
compasso anormal
anacronismo musical
de pulsos rítmicos
cada vez menos orgânicos
Sinto-me
batuque eletrônico
batuque cibernético
palmas tambores
fogueira, lareira, fogão
nem sinto-me
no calor desta explosão
em que imbico-me
perdido sem direção
uma velocidade sem tempo
a ignorância completa diante do espaço
Nem sinto, e nem sinto-me
(dá no mesmo)
parte do espaço que sou
também
integrando o cósmos
desintegrando
cada vez mais
vou
compondo este desassussego
cego
mudo
surdo que sendo
um apático vendo
retrógoda ação
de tanto que faço e pouco desfruto
neste progresso da ordem de Involução

Uirah Felipe

quinta-feira, 14 de junho de 2007

...

“Tenho a vontade incontrolável de escrever sobre inúmeras coisas das quais sinto-me proibido de dizer. Postergo tais escritos na esperança de que a memória conserve alguma fertilidade de tamanha volúpia jovem de fúrias e paixões. Mas o tempo, entidade tão inatingível quanto é o espaço, me prega uma peça a cada vez que tento retornar aquilo que já não sou: fracasso, e morre de mim toda aquela impulsão vital que não realizou o que era de infinito desejo.”



Uirah Felipe


quarta-feira, 13 de junho de 2007

O Lixo em: REFLEXO-PARADOXOS INEVITÁVEIS
















o LIXO [de Luís Fernando Veríssimo]

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

- Bom dia...

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612

- É.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

- Pois é...

- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

- Na verdade sou só eu.

- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

- Entendo.

- A senhora também...

- Me chame de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...

- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é...

- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

- É.

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

- Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

- É que eu estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você já está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler...

- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

- Ontem, no seu lixo...

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

- Jantar juntos?

- É.

- Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha?

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu?



















Reflexo-paradoxos inevitáveis

“ O Lixo”, de Luís Fernando Veríssimo, é uma crônica em diálogo, de uma dinâmica hipnotizante, que pode facilmente ser lida enquanto se joga o lixo lá fora. No texto, o autor evidencia claramente o caráter da distância que as relações sociais básicas do cotidiano vêm adquirindo com a evolução progressiva da modernidade contemporânea. Em um novo século de gerações e gerações de workahollics de todos os tipos, da era dos filhos da informação “online”, onde as únicas fronteiras são a ignorância e a incapacidade de acesso à tecnologia, neste universo recém emancipado onde a distância entre qualquer lugar é a de apenas fragmentos de segundo – cliks -, nesta zona neutra onde a cultura, líquida e acorpórea, é que dialoga e se manifesta livremente; onde as ideologias ventam sem a interferência da geografia, onde uma simples idéia, convertida em códigos binários e linguagens matemáticas, é capaz de se espalhar rápida e violentamente como um vírus, contaminando quase instantaneamente o universo virtual e assim consequentemente o real também de maneira incontrolável, ou, ainda, irremediável, e revelando assim uma inevitável expressão dos movimentos de um conjunto global que finalmente busca uma identidade planetária – a infinita curiosidade humana encontrou um paraíso para realizar-se com a mesma velocidade instantânea que clama hoje o nosso cotidiano: a internet.

Da desfragmentação generalizada do espaço-tempo, onde impera uma ORDEM dE PROGRESSO aparenta ter o desejo intrínseco de acelerar o relógio, parece que, cada vez mais, as interações físicas nas relações humanas se tornam a cada dia mais plásticas, corriqueiras, teatrais e/ou superficiais. Está dia-a-dia sendo subtraído delas seus importantes valores natos da vivacidade da comunicação biofísica. O que por um lado nos faz estar conectados com todo o globo, nos isola da experiência com o real irrefutável do espaço-tempo. No paradoxo do conhecimento caminhamos sobre essa inconstante água, que tanto nos eleva aos céus quanto nos curva diante de telas de vidro e teclados, como homens das cavernas hipnotizados madrugada adentro pela luz de um fogo e o calor de algumas idéias.

O casal retratado por Veríssimo explicita esta realidade contemporânea humoristica- mente, quando, sendo um completamente estranho ao outro, alheios ao fato de serem vizinhos, descobrem ter em comum uma identificação mútua pelo lixo um do outro. Neste “admirável mundo novo” analisa-se o lixo de uma pessoa muito mais facilmente que a própria pessoa que produz esse lixo – a frieza da velocidade contemporânea faz dois seres humanos serem muito mais capazes de depararem-se inúmeras vezes com o lixo de um vizinho (agora naturalmente um estranho) do que com o próprio vizinho em pessoa.

Mas Veríssimo não pára a crônica nisso, ele fuxica o lixo profundamente e encontra questões ainda mais impressionantes. Não obstante o absurdo de distância que pode separar dois vizinhos, são notáveis as reflexões em que o diálogo criado pelo autor vai abruptamente se aprofundando. Em pleno desenvolvimento da cultura da propriedade e do copyrigth, a personagem se depara com o fato extraordinário de que o lixo, ou, ao menos o lixo, é um domínio integralmente público! A reflexão se aprofunda ainda mais nesse 'lixão' ideológico':

“- Você tem razão (o lixo é domínio público). Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?”

O lixo, enquanto exclusivo e legítimo domínio público, se tornou o bem mais social que nossa civilização conseguiu “construir”. Será esse o nosso triunfo?!

Outra considerável observação é o comportamento, ao mesmo tempo comum e anormal, das personagens, que, ao mesmo tempo que fuxicam o lixo alheio, jogam fora material de imenso valor pessoal. Mas o mais curioso é o fato de ambos deixarem intactos os seus objetos antes de se desfazerem deles. Como que sendo fuxiqueiros de lixo de plantão, tiveram o descuido cuidadoso de não comprometerem a integridade do que estavam por se desfazer.

Cada vez mais condicionados e gradualmente habituados a “viver num mundo virtual”, o homem abre mão da expressão de sua subjetividade no plano real e fatalmente tende a transferir este vazio do mundo físico para o universo virtual. A cultura blasé em ascensão, em paralelo com o excessivo contingente de personagens com que obrigatoriamente o novo homem se relaciona, empurra tanto as camadas sociais mais fúteis, que desfrutam dos novos recursos comunicacionais para fertilizar seus egos e conquistarem o sucesso social – a popularidade – que lhes falha no mundo real, quanto faz aproximar círculos sociais ímpares através da capacidade de interação e troca de informações de inúmeros gêneros do desenvolvimento do conhecimento humano. Uma real recriação da realidade, uma verdadeira Matrix, onde a grande novidade é não existir espaço (e portanto uma completamente nova concepção de tempo que repentina e inevitavelmente se cria), e por não existir espaço, poder se “desconectar” dos pesos que o corpo eventualmente lhes tragam no mundo comunicacional do universo real.

Sites de relacionamento como Orkut, Second Life, uolkut ou Myspace acabam por legitimar relações “fake” que passam a se tornar reais a medida em que muitos só se relacionam através destes mecanismos cibernéticos. O teatro social, no mundo virtual, não prevê um corpo real, e portanto a timidez, a insegurança, a sociofobia e muitos outros males modernos podem ser completamente abafados na auto-recriação inevitável que todos enfrentam quando estão diante da telinha de vidro conectada por um fio elétrico. As pessoas de hoje são capazes de criar verdadeiras outras identidades: fotos photoshopicamente hiper-reais, vídeos, pró-tools no conteúdo sonoro, efeitos e mais efeitos da caixinha mágic do 'personal computer'. Raramente irá condizer a personalidade virtualmente expressada de um internauta com a sua verdadeira personalidade. Avatares de programas como “Second Life” são possivelmente mais bonitos, mais fortes e aparentemente muito mais bem sucedidos do que o “eu” verdadeiro que esconde-se cautelosamente por trás do boneco-personagem que se apresenta ao mundo virtual-real. Além disso, softwares como yahoo-messenger, msn-messenger, icq ou googletalk, vão pouco a pouco tomando a função do convívio social direto. Em um mundo onde se possuí centenas de amigos, não é de se admirar que, pela lei do menor esforço, seja mais 'vantajoso' “conversar” com 20 pessoas (ou personagens virtuais) ao mesmo tempo do que perder o cada vez mais precioso tempo numa roda social onde, muitas vezes, é com dificuldade que se consegue a atenção garantida e desejada em atmosferas cada vez mais blasés. O pragmatismo do modo de vida capitalista não afeta somente o nosso “personagem-profissional”. Pouco a pouco vai se infiltrando na personalidade íntima de cada um aquilo que antes, na aurora de seu desenvolvimento, haveria sido rejeitado prontamente.

Mas não somente aspectos negativos podem ser observados neste vasto caos da IDADE MÍDIA. O movimento dos blogs e outros provedores de sites pessoais cada vez mais personalizáveis traz uma “realidade” bastante antagônica à febre egológica que epidemicamente se espalha pelas redes de comunicação virtual. O que para muitos o universo virtual representa uma oportunidade de recriar falsamente seu ego devido ao insucesso no mundo real, para outros, partindo do mesmo desejo de livrar-se deste insucesso quase inescapável, é uma brilhante oportunidade de deixar mais livre a sua capacidade de expressão subjetiva. Isto se reflete na popularidade que a mídia independente, através de blogs e outras ferramentas semelhantes, vem desenvolvendo dia-a-dia e ganhando cada vez mais relevante influência no mundo real. Sites como wikipedia, google, altavista, fotolog ou blogspot indicam o pontencial de sucesso que existe nas idéias libertárias neste paralelo mundo que se consolida movendo quantias financeiras absurdas no mercado financeiro mundial. Mais um paradoxo conflitante à que caminha a humanidade. Mas ainda mais surpreendente seria pensar que este antagonismo nas intenções daqueles que desfrutam das ferramentas comunicacionais do mundo virtual não esteja aglutinado em dois pólos somente na população como um todo, criando assim dois tipos de comportamento distintos. É mais impressionante ainda notar que esta dupla relação com o mundo virtual está dentro de cada indivíduo. Tanto o egomaníaco passa a expressar mais sua subjetividade, quanto o adepto à expressão íntima e verdadeira no plano virtual acaba desenvolvendo o seu egocentrismo, num círculo vicioso infinito do essencial paradoxo da natureza humana.


Uirah Felipe








Uirah Felipe



quinta-feira, 7 de junho de 2007

-TERRÁQUEO-














Quanto tempo terá

todo esse pouco tempo

gigantesco

que veio do inalcançável primeiro dia

até hoje num piscar


Sou um planeta povoado por sonhos

minhas florestas respiram fantasia

e minha gente

é toda ela que cria

das angústias às alegrias

toda sorte de dores e anestesias


Imoral













meu sendo é o descobrir

do que jamais antes

eu me surpreendi

é uma aceleração

de velocidades incalculáveis

onde os raios da luz do sol

fazem um curva extensa

nas nossas dúvidas existenciais

e penetram o solo caoticamente

aquecendo os meus passados

iluminando minhas raízes

desenvolvendo o meu amanhã

imprevisível


inimparcializável
















sou um aquecimento moral

minha ética não memoriza os fatos

mas sim as vivências

o sentir e o criar

são em mim mais valiosos que o saber

Meu pecado é só desistir, adiar, prosternar

esperar para ver e não abrir os olhos

Salvar-me é por sempre a alma em risco

pra que eu e ela não percamos nunca a intimidade

desafiando os limites da minha mente

minhas emoções, do caos e das confusões

Vou... contactando-me à Terra, urgentemente.

sábado, 2 de junho de 2007

Naturalmente doação... à venda.























"já não me habita mais nenhuma utopia. animal em extinção,
quero praticar poesia
–a menos culpada de todas as ocupações."
[ Waly Salomão ]


































Prostituídos pelo Consumo

O Hoje tem tornado-se tão relativo e subjetivo quanto qualquer construção mnemônica a respeito dos acontecimentos de um ontem que tanto pode ter acontecido à 24 horas quanto 24 meses...ou anos, quem sabe a diferença? Não se vive mais uma vida, um personagem, uma personalidade, um tempo ou um espaço. Moda. Hoje tudo é transformação. Mudar é uma lei implacável. A multiplicidade afetou a individualidade de cada um. Não temos mais uma, mas muitas personalidades, que variam de acordo com contextos ou circunstancias específicas. Não temos mais UMA VIDA REAL. Temos algumas, e mais as vidas cibernéticas desenvolvidas através do virtual convívio social das ferramentas comunicacionais da IDADE MÍDIA – a internet. E quem somos? Os comerciais da TV dirão a resposta? Porque hoje - (e quando é isso?) - parece que se somos, só somos porque consumimos? É dito pelos pensadores contemporâneos que no consumismo diário desenvolvem-se as características de cada personalidade, será? Sim e não, não podemos fugir do que nosso corpo fala, seja pelo que faz, veste, ou consome. E quem somos, meu deus do céu!? Quem somos? Até Deuses, filosofias, intimidades, sonhos, tudo vira produto! Trabalhar passou a significar fazer parte da grande rede apressada por aumentar a sua produção de eterna aceleração. Produção de quê? Ora, tudo, tudo vira produto... É nesse sentido que todos (ou quase todos) fazem o que fazem. Venda, compra, troca. Nossa cultura esqueceu completamente o que significa solidariedade ou compaixão. Ninguém mais quer fazer aquilo que deseja fazer sem transformar antes o resultado de sua ação em um produto, um “algo” que lhe confira números no fictício imaginário coletivo dos valores monetários.
De exaustivamente farto à energicamente enfurecido, sou obrigado a me deparar diariamente com aquela coisa suja que “carinhosamente” chamamos de dinheiro. Porque essa coisa de valor representado? O valor das coisas deveria estar nas próprias coisas, em seus usos e usofrutos, e não em números cotados a partir de margens comparativas de absoluto desequilíbrio de julgamento. PROPRIEDADE. COPY RIGTH. Is that really rigth? Não importa... né? É assim que é. A revolta de ser escravizado pelo universo consumista do capitalismo diário pode ser libertada em pequenas doses de internet, onde, quem tem acesso, é quase livre... Pelo menos é levado a se iludir que assim está sendo... E vendendo nossos subconscientes às janelinhas de propaganda, sem querer querendo vamos nos permitindo, conformadamente, a sermos plugados nesta MATRIX do consumo, onde jamais se desfruta do que se necessita, onde se vende um pouco de si em cada compra, onde o que sonhamos pode ser compilado num filme, e o que acreditamos, em uma novela ou um jornal, e o que queremos, resumido à luta diária de uma medíocre fatia no bolo da tal entidade conhecida como mercado. Sabe, É FODA. Não dá pra seguir este destino traçado previamente pela televisão ou pelas revistas e jornais, cartazes e rádios. E qual escolha nós temos? Temos? Não temos a opção de não escolher. Se não queremos obedecer, nos obrigam a mandar. Mas... e se não queremos mandar e nem obedecer? Parece que quando nascemos já estamos completamente vendidos... e nunca seremos pagos por esta venda.

[-Uirah Felipe-]